Por Manoela Victoria
A ti, Medo,
Nós nos conhecemos no momento que me tiraram do útero de minha mãe – não sei se eram as luzes ou o frio, ou o não se saber pertencer-se a dois ou a um só o que mais me apavorava, mas sei que, em minha insignificância, fiz a única coisa que eu nasci sabendo fazer: chorar.
A ti, Medo, que mora no escuro e não me permite enxergar.
A ti, Medo, presente no meu leito de hospital.
Que se faz presente diante dos vãos grandes das plataformas de trens e me obriga a fechar os olhos e a não respirar.
Que se faz presente em toda ideia, opinião, que me fala com sua voz fina – e nem tão cruel assim – que o que eu faço não vai funcionar.
A ti, Medo, que me faz a todo tempo me autossabotar. A entrar neste ciclo de ansiedade de que as coisas nunca viram, de que todas as palavras ruins já ditas a mim são a absoluta verdade, e de que eu devo perder a esperança por qualquer mudança ou qualquer vitória. Que a inutilidade do meu ser me traz a sensação de que é irrelevante cada vez e todo tempo que estou aqui. Que eu não devo me levantar desta cama, que ela deve me prender.
Que eu passe sete dias sem tomar banho, comendo migalhas só para que eu não murche de fome.
A ti, Medo, que quando tive de contar a meus pais que estava grávida, me fez me sentir como se uma pele nova me engolisse e me sufocasse. Como farinha com água que gruda no fundo das unhas, como se tivessem arrancado minha coluna.
Medo, você nas minhas mãos frias e suadas, eu sem dormir, sem comer, como se o nada fosse me consumir, e de nada eu fosse virando cada vez algo menor, menor e menor. Pois, Medo a questão era a de todas as vidas não vividas, de todas as escolhas que você pôde fazer, mas você não pode.
A ti, Medo da Morte, que é o algoz dos que vieram antes de mim e virou minha grande sombra incômoda.
A ti, Medo, que mesmo quando me falam a ladainha de – você tem de ser forte – tu não te tornas menor, não se faz mais suave.
A ti, Medo, que como diria aquela frase de O Auto da Compadecida – “Homens começam com medo, coitados, e terminam por fazer o que não presta, quase sem querer. É medo”. Então, Medo – como não sou homem, apesar de te sentir também, hoje, eu faço as pazes contigo.
Eu te dou minhas mãos, permito que ande ao meu lado, me torno contigo uma só e aceito que você também seja parte de mim.
Mas não permito mais que me consuma, não permito abraço de urso, nem afogamentos ou que sejamos, agora, companhia um do outro.
E já lhe aviso que não há mais espaço para crescimentos gigantes, não há mais espaço para consumir minha língua e me deixar sem voz, sem respiração, sem chão. E você há de aceitar meus termos.
Eu lhe concederei alguns dias, aqueles em que não vou estar muito bem. Peço gentileza em tais momentos de escuridão e desabafos em terapia, momentos de fragilidade, vãos de trens, escuridão e altura, mas medo… Hoje, eu preciso te dizer: eu faço as pazes contigo.
Autor
-
Manoela Victoria P.C.S.S. é uma jovem de muitos talentos. Manu é estudante, professora de Inglês, tradutora, coautora do livro infantil " As Histórias do Papai" e mãe da Joana, de oito meses. Ela se entrega à leitura e é apaixonada por bichos. Adora a natureza e quer encher o apartamento onde mora com plantas charmosas como as "suculentas".
Ver todos os posts
2 comentários em “Carta aberta ao Medo”
Perfeito, Manu. Fazer as pazes com o medo é reconhecer a sua dura existência, mas é, também, estabelecer limites e fechar portas de acesso….é dar as mãos, mas soltá-las quando o frio nos assola e a escuridão nos fragiliza. É dizer: medo, me respeita…e acender todas as luzes! Muito intenso seu poema. Parabéns!
Achei forte e cheio de coragem! Bem sincero, um pouco sombrio mas, falar do medo sem ter um teor sombrio, não seria real, verdadeiro.