Estatuto dispõe que a criança e o adolescente têm direito à cultura e ao lazer. Taís Vella Cruz, mestre em Direitos Humanos e Democracia, defende que a leitura estimula o desenvolvimento, o pensar, o imaginar e o ser.
O ECA, Estatuto da Criança e Adolescente, completou 30 anos em 13 de julho. A mestre em Direitos Humanos e Democracia pela UFPR, Universidade Federal do Paraná, Taís Vella Cruz, tem muito a dizer sobre o assunto. Ela é coautora do artigo “Para a escuta de todas as vozes: reflexões sobre a infância, participação e constitucionalismo popular a partir da obra ´A bolsa amarela´, de Lygia Bojunga”, publicado em parceria com Tatyana Scheila Friedrich, no livro 30 anos do ECA. O lançamento é da Escola Superior do Ministério Público do Paraná, em parceria com a Escola da Magistratura do Paraná.
Acompanhe a breve entrevista para a Letraria cedida pela Taís, que também é assessora da 1.ª Promotoria de Justiça de Proteção ao Meio Ambiente de Curitiba.
Por gentileza, comente acerca do contexto do surgimento do ECA e sua finalidade.
Para falar do surgimento do ECA é preciso voltar um pouquinho na história. O ECA foi publicado em 13 de julho de 1990, mas em 1988 havia sido promulgada a nossa Constituição Cidadã. Os anos que antecederam a sua promulgação foram marcados pelas atividades da Assembleia Nacional Constituinte, que contou com a participação de diversos movimentos populares. Eles buscavam a inclusão de suas pautas no texto da nova Constituição. Dentre esses movimentos destaca-se a mobilização em prol dos direitos da criança e do adolescente e, por exemplo, a atuação do Movimento Nacional dos Meninos e Meninas de Rua (MNMMR), que realizou ações importantes em busca da mobilização nacional e participação da sociedade na defesa dos direitos infantojuvenis.
As atividades parlamentares e, sobretudo, o engajamento popular resultaram na edição dos artigos 227 e 228 da Constituição de 1988, resultado da fusão de duas emendas populares que levaram ao Congresso quase 200 mil assinaturas de eleitoras e eleitores e mais de 1.200.000 assinaturas de crianças e adolescentes.
A Constituição de 1988 então tratou, de maneira inovadora, sobre os direitos da criança e do adolescente, dispondo que é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, uma série de direitos denominados fundamentais.
Contudo, ainda era preciso detalhar, pormenorizar, descrever instrumentos e agentes para realizar tudo aquilo que a Constituição passou a assegurar. Assim, o ECA foi publicado em 1990, baseado nos princípios enunciados pela Constituição e, também, na Convenção Sobre os Direitos da Criança de 1989. É possível dizer que sua finalidade é tratar sobre os mecanismos para a realização dos direitos previstos para então inserir efetivamente a criança e o adolescente como sujeitos de direitos no plano jurídico e social, isto é, conferir-lhes proteção e direitos, sem desconsiderar que também são capazes de expressar suas opiniões.
Na sua opinião, quais as conquistas do ECA ao longo desses 30 anos do Estatuto?
O ECA é um grande marco para os direitos da criança e do adolescente no Brasil. Por isso, são inúmeras as conquistas que decorrem dessa Lei. Antes do ECA, duas legislações trataram da infância no Brasil: o Código Mello Matos, de 1927 e o Código de Menores de 1979. Essas duas leis, principalmente a segunda, compreendiam a criança e o adolescente como objetos de intervenção e determinava a atuação do Estado somente nos casos em que a criança ou o adolescente estivessem em “situação irregular”.
Diante disso, considero como grandes conquistas do ECA: a compreensão da criança e do adolescente como sujeitos de direitos, assegurando expressamente o direito de participar, serem respeitos e ouvidos na vida comunitária, familiar e até mesmo política; o princípio da prioridade absoluta, que estabelece a primazia em favor da criança e do adolescente em todas as esferas que envolvam os seus interesses, de tal forma que a proteção deve ser compreendida como um dever social a ser observado por todos e, dentre outras conquistas, a criação do Conselho Tutelar, que é um órgão hoje fundamental e atuante no sistema de proteção previsto pelo ECA, representante da efetiva participação da sociedade na discussão e fiscalização de políticas públicas, além de prestar atendimento direto a crianças e adolescentes.
Atualmente, no Brasil, quais questões referentes às crianças e adolescentes precisam do olhar mais atento da sociedade?
É difícil apontar apenas uma questão, quando se sabe que inúmeros direitos de crianças e adolescentes no Brasil ainda permanecem distantes de um plano ideal de realização. No entanto, acredito que a educação possa ser destacada.
O ECA dispõe que a criança e o adolescente têm direito à educação, no intuito de promover o seu pleno desenvolvimento e preparo para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho. Também assegura que a criança e o adolescente terão direito à educação pública gratuita.
Contudo, segundo relatório do Unicef, publicado em 2018, seis em cada dez crianças brasileiras vivem na pobreza e mais de 2,8 milhões de crianças e adolescentes estão fora da escola. Para um país que defende a prioridade absoluta para a garantia dos interesses da criança e do adolescente, os dados são inadmissíveis.
Além disso, para além do direito de estar na escola é preciso pensar na qualidade e na prioridade que tem sido conferida à educação pública no país. É cruel pensar na disparidade que, em geral, existe entre a educação pública e privada e depois defender que o acesso às universidades é uma questão de dedicação e meritocracia.
Não bastasse isso, a educação ainda tem de lidar com constantes ataques, por parte de pessoas que não valorizam a sua importância, não respeitam a ciência e não conhecem a sua realidade, menosprezando o papel de escolas para a realização dos direitos da criança e do adolescente, integração com a família e transformação da sociedade.
Assim, a prioridade de investimentos que visem o efetivo acesso e permanência de qualidade na escola se faz essencial, sem falar na urgente melhoria de condições de trabalho e valorização de professoras e professores, que são agentes fundamentais na plena efetivação do direito à educação. Acredito muito naquela frase da Malala que diz: Uma criança, uma professora, uma caneta e um livro podem mudar o mundo”.
Como o cidadão deve proceder em caso de denúncias de abuso contra crianças e adolescentes? Onde procurar ajuda?
Saber como denunciar casos de violência contra crianças e adolescentes é essencial, principalmente no atual contexto de isolamento social, quando esses casos têm aumentado.
O 190 da Polícia Militar sempre pode ser acionado e é possível que em cada cidade exista uma delegacia especializada nos crimes contra a criança e o adolescente, que possa ser acionada.
Além deste, também existe o Disque 100, que funciona 24 horas por dia, incluindo sábados, domingos e feriados. A discagem é gratuita e pode ser feita de qualquer telefone, fixo ou móvel. O número atende violações de direitos que acabaram de acontecer ou que ainda estão acontecendo, sendo que ele recebe, analisa e encaminha as denúncias de violação de direitos humanos relacionados, dentre outros grupos, à criança e ao adolescente.
Também existe um aplicativo chamado Proteja Brasil. Ele pode ser instalado gratuitamente e permite fazer denúncias de violência contra crianças e adolescentes direto pelo aplicativo, além de possibilitar localizar os órgãos de proteção nas principais capitais e, também, se informar sobre as diferentes violações de direitos. O APP encaminha as denúncias diretamente para o Disque 100.
Qualquer cidadão também pode procurar as autoridades e órgãos competentes, como o Ministério Público da sua cidade, especialmente a Promotoria da Infância e Juventude e o próprio Conselho Tutelar, que irá tomar as medidas cabíveis para apurar a situação noticiada. Independentemente do canal, denunciar casos de violência contra a criança e o adolescente é muito importante e é papel de todos.
O que você diria a uma criança/adolescente que enfrenta problemas com violência física e agressão moral no Brasil?
A violência contra a criança e o adolescente pode se manifestar de diversas formas e todas elas devem ser combatidas. O que eu diria para uma criança ou adolescente vítima de violência é: “Você não tem culpa por nada disso e você pode e deve procurar ajudar. Existe toda uma rede de proteção, formada por profissionais especializados que podem te ajudar, especialmente se você tentou conversar com sua família e não deu certo”. Para as famílias também é importante compreender que seu papel é, dentre muitas outras coisas, cuidar, proteger, permitir o desenvolvimento sadio e ouvir o que a criança ou adolescente tem a dizer. A violência contra a criança não deve ser menosprezada ou escondida. Deve ser sempre denunciada e combatida.
Como você defende a importância da leitura, das artes e da cultura na vida cotidiana de uma criança e de um adolescente? O que elas podem fazer em favor dos pequenos?
O ECA dispõe que a criança e o adolescente têm direito à cultura e ao lazer. Para mim, a leitura compreende uma das formas mais bonitas de cultura e uma das mais prazerosas de lazer. A leitura estimula o desenvolvimento, o pensar, o imaginar e o ser da criança ou adolescente. E talvez uma das melhores coisas: permite conhecer o que antes era inimaginável e por isso estimula a romper barreiras, lançar-se ao novo, sonhar. Acredito muito que um livro pode salvar uma alma e transformar uma história. O único problema é que livros ainda são tidos como caros no nosso país. E considerando nosso contexto social, na verdade, são mesmo. Por isso, mais uma vez, a educação deve ser priorizada, crianças e adolescentes devem ter acesso a boas bibliotecas, pois se transportar para uma outra realidade por meio de uma boa história é mesmo um poderoso direito que deve ser assegurado a todas as crianças e adolescentes. O que é muito bom nessa história é que a internet já nos ajuda nessa tarefa, sem falar nas iniciativas mais que especiais e importantes de integrantes da sociedade civil, que ajudam a levar livros e a leitura por ai, chegando a crianças e adolescentes, como acontece com o Letraria.
Saiba mais
Seguem as referências de textos indicados por Taís Vella Cruz. Eles serviram de referência para as respostas da entrevista e podem ser consultados.
AMIN, Andrea Rodrigues. Evolução histórica do direito da criança e do adolescente. In: MACIEL, Kátia Regina Ferreira Lobo Andrade. Curso de direito da criança e do adolescente: aspectos teóricos e práticos. 8 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2015.
UNICEF. Pobreza na Infância e na Adolescência. 13/08/2018. Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/media/156/file/Pobreza_na_Infancia_e_na_Adolescencia.pdf. Acesso em: 25 jul. 2020.
1 comentário em “Entrevista Taís Vella Cruz – 30 anos de ECA”
A Tais é uma pessoa e uma profissional extraordinárias! Foi minha aluna no mestrado na UFPR. Parabéns à Letraria Cultural pela iniciativa de convidá-la para falar de um assunto tão importante, um artigo tão sensível e uma obra coletiva tão fundamental.